No primeiro caso, refiro-me às heranças de matriz judaico-cristã que associam tanto a apresentação como a representação do corpo a pecado, nomeadamente aos sete pecados capitais. Estes pecados têm como objecto, cada um deles e no seu todo, instintos/desejos primários relacionados com o corpo. São: a luxúria, a gula, a avareza, a preguiça, a ira, a inveja e a vaidade (soberba ou orgulho). A palavra “primários” tem aqui duplo significado: quer dizer que são instintos inatos, elementares, pouco elaborados, os quais não se atingem intelectualmente ou pela educação. Por isso é fácil considerá-los pouco elevados. Mas tem também o significado de primeiros, essenciais, indispensáveis, fundamentais. Impossível contorná-los. Ao invés, o que procuramos, regra geral, atingir pela via intelectual e da educação é precisamente o oposto e por isso as sete virtudes capitais são valores intelectuais e de auto-controlo: castidade, temperança, generosidade, diligência, paciência, caridade e humildade.
Os sete pecados capitais e as sete virtudes que se lhes opõem visam controlar ou extinguir os instintos primários do corpo. Ao esconder essas manifestações do corpo, é o próprio corpo que se está a esconder.
No segundo caso, o corpo aparece-nos, por via das abordagens técnico-científicas visto de forma cartesiana e determinista. Cartesiana no sentido da formulação res cogitans / res extensa, ou seja, da separação do corpo e da mente como entidades com funcionamentos completamente separáveis e explicáveis independentemente. Para mais, a formulação res cogitans enfatiza a função cognitiva (do raciocínio, da razão) e separa-a também das dimensões emocionais, que saem assim menosprezadas. Estas separações abrem caminho à parametrização de aspectos do funcionamento do corpo considerado isoladamente como mecanismo, ou seja de que esses parâmetros seriam determináveis independentemente de factores emocionais, racionais, sensoriais, espirituais ou culturais. Factores que são, na sua maioria, individuais e, em todo o caso, particulares.
Como é possível que o meu conforto possa ser calculado e quantificado em 6 cm de poliestireno expandido na parede e doze na cobertura?
As perspectivas técnico-científicas tendem a produzir as representações do corpo que vimos nos nossos manuais escolares de ciências da natureza e que a visita a um museu de anatomia revela, através da observação directa, terem muito pouco a ver com a realidade. São representações abstractas, isto é, conceptuais, do domínio exclusivo da mente cognitiva e são, por isso, incapazes de produzir uma identificação directa com o objecto representado.
No terceiro caso, refiro-me à publicidade e ao showbiz, que utilizam amiúde imagens do corpo, (especialmente o feminino). Neste contexto, o corpo surge-nos numa relação muito mediatizada, através das imagens que o estetizam. Essas imagens são virtuais, são manipuladas seja pela escolha das (ou dos) profissionais, pelas poses, pelas roupas, as maquilhagens ou o photoshop e através desta manipulação estão a criar uma imagem de corpo. Ou, digamos antes, um corpo que não existe senão nessa imagem. São corpos que possuem apenas uma existência imagética, que se limitam a ser superfícies e fora dessa imagem, em concreto, não existem.
Nesta condição, a relação que estabelecemos com eles é superficial, fictícia e extrínseca.
Um cruzamento entre o segundo e o terceiro caso:
Quer por umas razões quer por outras, o corpo assume uma dimensão estilizada, é colocado, de certa forma, fora da realidade. O primeiro caso não o representa, o segundo representa-o de forma abstracta e o terceiro de forma fictícia. No primeiro caso os instintos primários são reprimidos, no segundo não são sequer considerados e no terceiro acenam-nos com simulacros irrealizáveis dos mesmos.
O corpo é sexo, gula, preguiça, mecanismo, superfície. Mas é também matéria, meio e produto. É o corpo que trago e que uso – para tudo, desde agarrar o mais simples objecto a um abraço ou uma dança (formas de me relacionar com outros corpos e com o meu). É o (e no) corpo que sinto e expresso – a dor, o prazer, a paixão, etc. É o (e com o) corpo que dou e recebo. É ele, nele e com ele que expresso. É manifestação de mim, da minha existência, finitude e efemeridade (manifestação permanente do meu nascimento e da minha morte).
O corpo é sexo, gula, preguiça, mecanismo, superfície. Mas é também matéria, meio e produto. É o corpo que trago e que uso – para tudo, desde agarrar o mais simples objecto a um abraço ou uma dança (formas de me relacionar com outros corpos e com o meu). É o (e no) corpo que sinto e expresso – a dor, o prazer, a paixão, etc. É o (e com o) corpo que dou e recebo. É ele, nele e com ele que expresso. É manifestação de mim, da minha existência, finitude e efemeridade (manifestação permanente do meu nascimento e da minha morte).
Com um sincero agradecimento à Doutora Maria João Marques, pela importante visita ao museu de anatomia.
4 comentários:
Muito interessante! Gostei imenso de te ler.
http://www.youtube.com/watch?v=iYhCn0jf46U
Boa, não conhecia este vídeo. A expressão "patch me up" ganha todo um novo significado :)
obrigado
De novo (está-se a tornar um hábito, rais'parta!) isto não é o meu comentário.
É só para sinalizar que gostei muito do post e da dimensão/profundidade que a ideia de 'corpo' pôde agora tomar.
(E obrigado.)
O meu comentário, acontecerá, inevitavelmente, mas não sei precisar quando.
Obrigada, gostei mesmo de ler... foi aprofundado e cuidado, mas sem deixar de lado uma opinião mais pessoal.
deixo o tal link de que te falei, photoshop disasters:
http://photoshopdisasters.blogspot.com/search?q=maxim
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