24 maio 2011

Na sequência daquilo que discuti com o Orlando a propósito do post Dis:Placed Parte II e da crítica que aí ficou implícita à concepção de projecto e de arquitectura na prática quotidiana da FAUP nos dias de hoje, decidi publicar um texto com o qual me cruzei acidentalmente.

FIGUEIRA, Jorge: Escola do Porto, um mapa crítico, Coimbra, Ed. DARQ, 2002, p.99 e 100.

« A noção de autonomia disciplinar da arquitectura, um dos mais estruturantes princípios orientadores da Escola do Porto, sendo resultado da fidelidade às conquistas do Moderno, não passa no entanto pela dimensão técnico-científica do movimento, daí a luta contra a Reforma de 57; mais tarde, vai ser garantida por dissociação com o grupo que promove, no interior da Escola, uma aproximação sociológica e analítica para a arquitectura, no início dos anos 70; e, ainda, nos anos 80, por oposição declarada ao "fogo-de-artifício" pós-modernista que, do céu de Lisboa, pretende ver a arquitectura imiscuída em valores mais performativos, cenográficos ou representativos.
No Porto, o instrumento que vai permitir manobrar as repetidas incertezas que toldam a autonomia disciplinar da arquitectura, e estabelecer-se como instrumento primordial de derivação poética, é o desenho.
A prática do desenho tem na Escola, desde as suas origens, uma forte presença e uma enorme importância construtiva - das propostas de transição de Manuel Marques até à delicadeza modernista de Mário Bonito, o rigor da representação segue igualando o rigor da composição.
O sentido oficial da Escola não descura a instrumentação que lhe serve de suporte prioritários, por isso, à falta de incentivo teórico, e enquanto duram os paradigmas, desenha-se. E, de uma consistente tradição representativa/compositiva, passa-se, ao longo dos anos 60, essencialmente pela mão de Siza, para um desenho revelatório que textura de maior complexidade e subjectividade o entendimento do projecto de arquitectura.
Do desenvolvimento deste mecanismo nascem as mais legítimas esperanças de uma libertação poética, individual, mas colectiva e pedagogicamente enquadrável. Este desenho, como este desígnio, são, para a Escola do Porto, fundadores.
A consistência formativa que vem desde a aprendizagem naturalista, com uso Beaux-Arts do modelo nu, será manipulada e corroída, a espaços, pela irredutível in-serena e extra-polar presença de António Quadros. E ainda aprofundada e esclarecida pelo trabalho de Alberto Carneiro que, elaborando sobre a assunção de um método de projectar, vai propor "uma ciência do desenho, uma ciência poética, que recolhe a sua legitimidade em conhecimentos e saberes construídos sobre a invenção e utilização de sistemas, de métodos e de modelos de representação do espaço no plano".
Mas a insistência no empenhamento conceptual como filtro crítico do desenho, para lá da intuição da cópia e da manualidade, nem sempre encontra terreno propício numa Escola resistente ao trabalho experimental, ainda prejudicado pela agravada vocação mimética que a mediatização da arquitectura provoca.
Com o tempo, o culto do desenho representará o melhor e o pior da Escola do Porto.
Como instrumento convencional e consistente, na tradição humanista de representar o homem no centro de onde parte o espaço e se acrescenta espaço imaginado, ligando o exercício projectual às tradições da arquitectura, integrando as regras da composição nas regras da representação, o desenho é um insubstituível mecanismo de domínio do projecto, da sua invenção e verificação.
Mas o desenho será também o campo de concentração que se pensa poder substituir a crítica e o conhecimento; que encarcerará modos e permitirá tiques, rotinas no projecto.
Quando o desenho começa a passar da cabeça para a mão, deslocando-se de uma forma de visibilizar o pensamento para modo de reproduzir modelos, a autonomia disciplinar da arquitectura é um campo demasiado árido e o projecto um lugar de manipulação formal de conteúdos alheios.
Subitamente, notar-se-á que o silêncio que outrora era branco mas significava e resplandecia, tende agora a ser apenas o reflexo impenetrável do vazio. »

2 comentários:

OGC disse...

Já alguma vez referi que gosto deste gajo?

Psinocas disse...

Não estás sozinho!