Recentemente, cientistas da Universidade de Maastricht mostraram ao mundo o primeiro hambúrguer totalmente produzido em laboratório. Por 250.000€ foi também o mais caro de sempre, mas já é apontado como alternativa futura à nossa galopante procura de carne, com argumentos de "sustentabilidade". Se os custos de produção baixarem talvez a excepção se faça regra e os animais abatidos a excepção. É que em vez de uma novidade, um hambúrguer feito em laboratório é apenas mais um passo numa longa tendência.
Desde a industrialização que se vem dando uma revolução quantitativa com discretas transformações qualitativas. Quando a carne era alimento só de uma minoria, a indústria de bens alimentares trouxe a quantidade para toda a gente à custa da correspondente transformação qualitativa. Quando fazer carne in vitro se tornar normal, talvez a criação de animais para abate se transforme num negócio de nicho e então, comer carne de verdade talvez volte a ser refeição só para alguns.
A produção industrial trouxe a generalização dos bens de consumo mas também a elitização das suas qualidades; a cultura, transformada em bem de consumo, não é excepção.
De um lado as grandes cadeias de distribuição, do outro o financiamento público do cinema e audiovisual em sérias dificuldades devido ao não pagamento da taxa anual pelas empresas operadoras (as mesmas das grandes salas de cinema). De um lado blockbusters cada vez mais massificados e padronizados, do outro um cinema cada vez mais inacessível.
Literatura
Nas livrarias, a frente renova-se continuamente na ocupação pela parafernália de séries e sagas, sequelas e prequelas que enfeitam as capas com autocolantes de "mais de x milhões já leram", "do autor dos bestsellers z e y". Há sempre também um canto onde estão, um tanto desorganizados, alguns livros bons de edições anteriores a preço de refugo; os mais recentes, muitas vezes, há que encomendá-los.
Música
A música dita "clássica" fez-se mais um género numa indústria de entretenimento de géneros formatados, compilação dos melhores adagios para ouvir enquanto lê (de preferência o último da autora do bestseller). Enquanto isso, a música contemporânea fez-se cada vez mais compreensível apenas para um grupo com hábitos especializados.
Arquitectura
Ao junk-space da cidade genérica junta-se a starchitecture de tiques genéricos e os genéricos que lhe imitam os tiques (o edifício da Vodafone, a praça Itália). Quando existe de facto algo de arquitectura torna-se difícil de o ler sob tamanho ruído mediático que tanto promove a macacada quanto mascara a arquitectura.
Neste ecossistema, a cultura de plástico (fácil, rápida, barata, padronizada) comporta-se como a espécie invasora que, a cavalo do "desenvolvimento económico" se tornando a mais disseminada. As outras espécies de cultura, talvez num mecanismo subconsciente de isolamento do ego, vão-se tornando cada vez mais raras, auto-referenciadas e inacessíveis. Onde entra o "progresso" assistimos a uma separação de públicos, separação das formas de produção e de distribuição que generalizam uma separação entre o comum e o extraordinário. Na perda de qualidades mútuas, o comum torna-se apenas banal e o extraordinário, meramente exclusivo.
Poderemos algum dia fazer coincidir o comum e o extraordinário ou iremos todos acabar assim?
7 comentários:
Gostei da reflexão.
Assim de repente, a resposta que me apetece dar à tua questão é:
À falta de produzir algo em que comum e extraordinário coincidam, os dois podem coexistir nas pessoas que recebem o que de apenas comum e de apenas extraordinário se produz.
Concordo que ambas tendem a polarizar-se, mas no caso dos - de alguma forma - 'consumíveis' (dos quais estou a excluir a arquitectura) não vejo razão para que tenham de se excluir mutuamente, parece-me possível fazer uma dieta que inclua o plástico e o gourmet (até porque o gourmet a que me refiro está a massificar-se também, abrindo-se a grupos menos restritos.) Acho que há espaço para tudo, e como dizes, a própria música clássica plastificou-se, ou seja, uma e outra coisa não estão necessariamente em rota de afastamento. Não consigo associar de forma tão taxativa o exclusivo ao extraordinário, acho que há muito extraordinário banalizado (e não acho que isso o torne menos extraordinário) e muito comum a querer passar por extraordinário (ser pseudo-intelectual está na moda; isso talvez não mude a qualidade intrínseca das coisas, mas muda a relação que as pessoas têm com elas).
Concluindo:
Acho que essa coincidência nunca vai chegar da parte de quem produz, não acho que seja possível esse produto perfeito que seja unanimemente maravilhoso. Essa gestão vai sempre estar a cargo do receptor, que decide o que fazer com o que quer que lhe chegue.
Diria que o "extraordinário" é também muitas vezes algo temporal... algo que está associado ao tempo em que nasce, e que a pouco e pouco se vai tornando mais banal à medida que já não quebra regras ou convenções ou surpreende de todo... à medida que as pessoas se vão adaptando a ele. Só o tempo é que vai conseguir provar quais são de facto os que resistem e continuam a ser referidos muitos anos depois (tal como uma boa obra de literatura).
Ainda sobre a massificação e os exemplos que referiste (como por exemplo em relação ao cinema) acho que estamos perante uma mudança de paradigma... e estamos naquele ponto em que o que há, neste momento já não consegue existir na economia actual e começam por isso a surgir novas opções. Muitos realizadores começam agora a virar-se para o kickstarter, por exemplo, e conseguem o financiamento recorrendo ao público que quer ver algo feito e não a ter de se adaptar ao que uma produtora diz que vai ser um "sucesso de bilheteira" ou não, dando uma oportunidade a quem tenha uma boa ideia mais fora do normal. é claro que também tem as suas questões, nomeadamente o facto de ser financiado pelo público, que pode simplesmente não estar preparado para uma obra que quebra convenções...
O dois aspectos que levantaram, "receptor" e "temporal", são dois complementos importantes ao que eu tinha escrito. Foram muito bem observados e vou pensar nisso uns tempos a tentar integrar tudo.
Penso que como produtores de formas podemos ter em juntar o comum e o extraordinário um projecto, num sentido alargado.
Acho que é um pouco isso que se lê no Siza quando fala do que procurava no Chiado, incluindo a "temporalidade" e o "receptor" (se alguém quiser, há uma entrevista na revista do público de ontem e textos no "imaginar a evidência" e "01 Textos").
O Siza é um mestre em fazer o comum tornar-se extraordinário (pela sua acção poética). E já agora, lembram-se da frase do Cézanne "Quero espantar Paris com uma maçã"?
Já depois de ter enviado o meu comentário encontrei "isto": http://www.youtube.com/watch?v=OkpF5PmdFYo e isto http://www.youtube.com/watch?v=M9n98SXNGl8&list=PLB422DCADBE92C733.
O primeiro é americano (verão bem porquê). O segundo é um clip do filme, numa parte importante (e há tantas!).
Abraços do Zé do Boné
Olá, olá. VIVA a reactivação do blog!
Não sei por que razão o meu comentário de ontem não apareceu. Por isso, aqui vou eu, de novo.
Apesar do título, acho que o Chicasso se preocupa mais com a massificação, com a "igualização", com a uniformização, com a perda de identidade que enforma a sociedade de consumo.
É por isso que estou,ainda hoje, agradecido ao meu professor de Inglês do 5º ano do liceu por me ter dado a conhecer o "Brave New World". E é também por isso que ouytro dos meus livros da minha vida é o "Fahrenheit 451".
Ambos são livros de ficção científica em que, como no "1984" se antecipa uma sociedade humana [é vardade, não há "marcianos" ou "aliens" ou "e.t."] composta por "pessoas" que não vivem, vegetam.
Os três livros - todos escritos no fim da 2ª Guerra Mundial ou poucos anos mais tarde - descrevem, com ângulos de observação diferentes, uma 'mesma' sociedade humana: a individualidade é proibida, o espírito crítico é condenado, a criatividade e o livro arbítrio impedidos de se manifestar. E em todos eles há a "Resistência", os que teimam em viver como humanos.
Em "Fahrenheit 451" é proibido ter livros, assim como lê-los. A denúncia de quem tenha livros em seu poder é premiada. A posse de livros é castigada com a detenção e a "re-educação" e os livros são queimados. A marca principal desta história está nos bombeiros, que, em vez de apagar incêndios, são a 'polícia' que destrói os livros, para garantir que todos sejam iguais e pensem da mesma maneira. A informação e a 'cultura' são transmitidos por jornais de banda desenhada e pela TV.
A marca principal de "1984" é o conhecido "BIG BROTHER", que é um dispositivo central de vigilância de comportamentos e de chamada de atenção para os 'desvios' e recomendação de correcções. Escrito em 1948 - dois a quatro anos após da invenção da televisão - já previu a sua presença generalizada na vida das pessoas.
No "Brave New World" o centro da história é o sistema de reprodução da sociedade: o ser humano já não pratica o sexo - heterosexual ou homosexual. A reprodução é garantida por verdadeiras linhas de montagem - por clonagem - que produzem castas que vão desde os Alfa aos Ómega. Òbviamente os Alfa são os dirigentes, com todas as características genéticas do comando, e os Ómega são os mais servis dos servis seres humanos feitos para aceitar todas as ordens das castas acima de si. Entre os extremos as castas estão preenchidas pelos elementos com as características genéticas apropriadas para que a burocracia funcione. As pessoas não morrem de doença, mas de total esgotamento, porque, apesar de tudo, a imortalidade não estava garantida. Mas não havia dor, nesta sociedade. A passagem era feita no meio de uma trip fenomenal de drogas alucinogénicas e de uso das máquinas de prazer sexual - sim: o prazer sexual é unipessoal e garantido por máquinas.
Em todas essas sociedades, porém, só a classe dirigente pode pensar e ter ideias, mas nem elas têm a possibilidade de ser diferente. Até a forma de vestir está uniformizada (com uniformes e tudo!).
Se quiserem ouvir ler o Fahrenheit 451 podem usar este link http://www.youtube.com/watch?v=aq781NLWGZk , para a primeira parte, e usar o link indicado para ouvir a segunda parte.
Como não consegui encontrar uma cópia à venda, fiz o download de uma cópia do filme, que podemos ver um dia destes, e conversar sobre o assunto, se quiserem.
Um abraço do Zé do Boné
Podíamos ver o filme, sim!
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