27 novembro 2006

Num constante desassossego
Caso Prático I

A partir de hoje, vamos ter um novo espaço regular, que designámos de Caso Prático (bem à maneira dos livros de História da Cultura e das Artes).
Como estreante, escolhi o Livro do Desassossego, de Bernardo Soares.



Este é um livro composto por centenas de fragmentos. Esses fragmentos são máximas, pensamentos, divagações, ou simplesmente títulos para textos nunca escritos, ideias para propostas não realizadas. E é através deles que nos é possível conhecer – ainda que a leitura seja, por vezes tortuosa – a mente de Fernando Pessoa.

Isto porque Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na baixa de Lisboa, é um dos muitos (mesmo muitos!) heterónimos de Pessoa. Ou melhor, um semi-heterónimo.
Terá surgido nos anos 20, após um “esgotamento heteronímico” de Pessoa
.

Dizem os especialistas na matéria que Soares é um esvaziamento de tudo o que há em Pessoa. Que é “o nada que Pessoa descobre em si quando pára de fingir”. Pois tal como ele próprio admite em Autopsicografia, “o poeta é um fingidor”.

Através de uma carta enviada a Adolfo Casais Monteiro, é possível verificar que Soares surgia em Pessoa sempre que este se encontrava sonolento ou cansado.
Dizem também os peritos que Bernardo Soares e Fernando Pessoa tinham bastante em comum. E de facto, alguns aspectos biográficos, por exemplo, comprovam a afirmação.
É ainda interessante saber que Soares morava perto do escritório de Pessoa e que frequentavam os mesmos cafés.

Sendo um livro ainda em expansão – pois ainda vão sendo encontrados registos pertencentes a este projecto – está também em constante análise e estudo por parte dos críticos pessoanos. Como é de calcular, em alguns pontos, as opiniões divergem.

Ao passo que uns defendem um Livro do Desassossego em duas partes, uma de Vicente Guedes (um semi-heterónimo anterior) e outra de Bernardo Soares, outros são de opinião que a primeira parte do Livro será do próprio Fernando Pessoa. O que os leva a crer que, apesar de não haver muitos dados sobre Guedes, este seria parecido, pelo menos literariamente, com Pessoa.

O que é certo, é que o(s) autor(es), dotaram o livro de uma panóplia de temas inimagináveis. Desde o pragmatismo da condição humana até, imagine-se, ao absurdo da própria literatura.
O único tema que escapou – e por pouco, muito pouco – foi a política.


São estas reflexões que dão ao Livro a importância que, de facto, tem, já que a ficção desenvolvida é apenas uma “autobiografia sem factos”.
Nas palavras do autor: Nestas impressões em nexo, nem desejo de nexo, narro indiferente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho a dizer.

Um livro não para ler, mas para ir lendo, e com o qual podemos aprender um pouco mais sobre nós próprios e perceber como se diz o indizível.

Dados (+/-) importantes:

- Pessoa nasceu em 1888 e morreu em 1935
- O Livro do Desassossego foi escrito principalmente entre 1929 e 1934
- A sua primeiríssima edição foi publicada apenas em 1982



5 comentários:

OGC disse...

Só mais um pensamento que eu adoro, mas não tive coragem de acrescentar ao artigo:

Trecho 105

ESTÉTICA DA ABDICAÇÃO

Conformar-se é submeter-se e vencer é conformar-se, ser vencido. Por isso toda a vitória é uma grosseria. Os vencedores perdem sempre todas as qualidades de desalento com o presente que os levaram à luta que lhes deu a vitória. Vence só quem nunca consegue. Só é forte aquele que desanima sempre. O melhor e o mais púrpura é abdicar. O império supremo é o do Imperador que abdica de toda a vida normal, dos outros homens, em quem o cuidado da supremacia não pesa como um fardo de jóias.

OGC disse...

Outra coisa...
Eu prometo que insiro imagens no artigo, para ficar mais agradável e completo.
É que o blogger de quando em vez torna-se teimoso... :P

Dália Dias disse...

muito bom,muito bem. este diálogo com a obra é um apetite de leitura que comprova a actualidade de Pessoa e a sabedoria de quem o mantém (no caso, o Orlando...).
agora, já não se pode descer de nível. é um luxo ter alunos assim. aprendamos!

Pablo Chicasso disse...

tens um estilo de escrita engraçado: parece que escreveste um canhenho mas lê-se em 30 segundos. e com muita clareza.

OGC disse...

Consegui!!!

O prometido é devido e mais vale tarde do que nunca: consegui finalmente pôr as imagens!!

:)